quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A mentira inevitável
Ela é a graxa que faz a engrenagem do amor rodar sem sobressaltos

Por Ivan Martins

Certa vez, não faz tanto tempo, eu estava em casa vendo Sex and de City com uma namorada. Na tela, Carrie Bradshaw acabara de despachar o amante para fora do apartamento dela quando seu namorado chegou, e foi recebido com a maior naturalidade. Eu virei para a namorada, que estava ao meu lado no sofá, e perguntei: Vocês são capazes de mentir com essa desenvoltura? E a resposta dela, sem tirar os olhos da tela: Ahã...

Sem exagerar e sem generalizar, algumas mulheres são excelentes mentirosas. Qualquer homem com alguma experiência já teve a chance de presenciar mulheres mentindo – em geral ao telefone, para alguém que está do outro lado da linha. É assustador. Qualquer um que não seja imensamente burro imagina, imediatamente, quantas vezes já não esteve na mesma situação, ao contrário.

Eu estava lendo outro dia uma reportagem americana sobre exames de DNA e o texto dizia que 30% dos pais que pedem exames genéticos de seus filhos descobrem não serem os pais biológicos das crianças. 30% é muito. Pode-se alegar que a amostragem é viciada, uma vez que o sujeito que pede o exame já deve ter motivos para desconfiar, mas isso deve ser compensado pelos milhões que não fazem exames porque sequer desconfiam da realidade. Logo, os números sugerem que há muita gente mentindo por aí.

Do ponto de vista da evolução do texto, seria bom se, neste ponto, eu pudesse opor a suposta vocação mentirosa de algumas mulheres à integridade moral dos homens, que não mentem – mas não é o caso. Homens mentem. Muito e descaradamente. Não sei se mentem tanto ou mais do que as mulheres, ou com menor talento, como me dizem, mas essas são questões acadêmicas: o certo é que homens e mulheres são propensos a enganar e serem enganados.

Se abrirmos mão de julgamentos morais – Fulano não tem caráter, Sicrana não presta – nos resta tentar entender por que as pessoas mentem. E a minha conclusão, provisória como todas, é que as pessoas mentem porque a vida conduz a isso, porque a mentira faz parte do nosso modo de vida.
Um exemplo, que envolve uma pessoa que eu admiro: Contardo Caligaris, psicanalista e escritor. Ele disse numa entrevista a ÉPOCA que não se incomodaria se a mulher dele contasse que conheceu um cara legal e transou com ele. Quantos de nós são capazes de repetir com honestidade essa mesma afirmação? Para dizer uma coisa dessas com sinceridade você tem de viver uma vida diferente daquela que vivem a maioria das pessoas. Você tem de estar pronto para dizer o que sente, fazer o que tem vontade e – muito importante – permitir que o outro faça o mesmo.

Bem, a maioria de nós não consegue nem falar sobre desejos fora da relação, quanto mais colocá-los em prática sem mentir. Aliás, a maioria de nós não tem coragem sequer de discutir essas coisas com a parceira. A gente assume que elas são ciumentas e possessivas e sai agindo por conta própria. Mentindo, eu quero dizer.

A maioria das pessoas, homens e mulheres, é ciumenta mesmo, mas há muita gente por aí que toparia uma conversa mais franca – mas o proponente da conversa tem de ter coragem de bancar suas consequências lógicas. Quem fala escuta. Quem exige liberdade concede. Em tese é fácil, mas quando se gosta é mais difícil.

É bom lembrar, claro, que não praticamos apenas mentiras de natureza sexual. As pessoas mentem também para estar sozinhas. As pessoas mentem para estar com amigos fazendo coisas inocentes. As pessoas mentem para garantir a si mesmas um espaço existencial livre de controle que é uma afirmação de liberdade – eu sou um sujeito, um homem, uma mulher, não apenas um marido, esposa, mãe, funcionário, presidente, o que quer que seja. Eu sou eu, e não apenas o papel social que às vezes me oprime.

Por favor, não me digam que as pessoas que amam não precisam mentir. Ou que pessoas que respeitam seus parceiros jamais escondem seus sentimentos. Ou que pessoas maduras simplesmente agem de acordo com a própria consciência. Talvez isso seja verdade para algumas poucas e virtuosas pessoas no planeta, mas para a maioria dos seres humanos mentir é simplesmente inevitável. Ou não?

Tente contar para a sua mulher sobre aquela garota do prédio de quem você não consegue tirar os olhos. Ela vai adorar saber. Ou descreva para ela o sonho erótico que você teve ontem com a amiga com quem ela compete desde a faculdade. A conversa vai ser ótima. Aliás, você quer mesmo saber o que a sua mulher sente em relação aquele seu colega do trabalho meio desagradável que já saiu com todas as mulheres bonitas do escritório? Ou como são as conversas dela durante o almoço com o bonitão com quem ela trabalha? Melhor não, né?
Para ser simples, mas sendo um tanto dramático, eu diria que as nossas relações de casal ainda são baseadas numa mentira romântica, a do amor que basta para toda a vida e que dispensa e suprime qualquer outra forma de sensação erótica.

Esse é um ideal que não tem lastro estatístico na realidade, mas que ainda serve de base para as relações de milhões e milhões de pessoas. As nossas relações. É uma mentira, ou uma abstração, que nos ajuda a formar casais, construir famílias e criar nossos filhos como tem de ser feito. É uma ilusão útil, embora um tanto opressiva, como tantas outras que os seres humanos inventaram ao longo da história. Mas ela funciona mediante um preço, o de que todos continuem omitindo parte do que sentem.

Sendo assim, eu acho que é hora de reabilitar ao menos parcialmente a mentira. É hora de assumir que ela é um mal necessário, que é uma espécie de graxa que faz a grande engrenagem do amor rodar sem sobressaltos. Uma mentirinha ali, outra aqui, uma omissão sincera e uma distorção inevitável e pronto: todos estão mais ou menos felizes e ninguém saiu ferido. Desde que não se peça um exame de DNA...

Haverá ocasiões em que, assim como a Carrie Bradshaw de Sex and the City, as pessoas estarão confusas entre dois sentimentos e terão de mentir. Ou não terão dúvida alguma sobre os seus sentimentos e ainda assim enganarão o parceiro que amam, movidas sabe-se lá por que tipo de impulso. Isso acontece todos os dias, provoca culpa e vergonha todos os dias e continua acontecendo, há milênios. E as pessoas continuam a ser perdoadas, apesar da dor que provocam. Escondido sobre a grossa camada da lei, parece haver o reconhecimento tácito de que a natureza dos nossos desejos é incompatível com as regras que nós criamos.

Posto isso tudo, haveria limite para o que é aceitável no terreno da mentira? Acho que depende de cada um, depende de cada tipo de arranjo afetivo, depende do caráter e do temperamento das pessoas envolvidas. Mas eu gosto de pensar que há sim limites e que eles são relativamente simples. Quando aquilo que se omite for maior do que aquilo que se diz, esse limite chegou. Quando aquilo que está escondido for maior do que aquilo que se pode mostrar, o teto foi alcançado. Então é hora de abrir a janela e restabelecer a verdade. Não sei se ela salva, mas, de alguma forma, redime.

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